quinta-feira, 25 de novembro de 2010


"Oito horas da manhã. Quarta-feira. Hai dorme profundamente entre edredom e travesseiros brancos, com estampa de poás pretos. Muitos travesseiros para uma só mulher: quatro. Sono induzido, de quem só dorme com remédios. Sonhos difíceis de serem lembrados ao acordar.
O interfone toca. Uma, duas, três vezes. Ela desperta na terceira. Toca novamente. Livra-se do cobertor e dos travesseiros com certa violência e vai atender de má vontade. Pragueja e pensa quem seria inconveniente de chamá-la tão cedo. Ela raramente acorda antes das nove. Seu péssimo humor matinal é piada entre os amigos. Os familiares distantes de Hai relembram que ela era a criança mais ácida ao acordar, que os Dör tinham notícia em todas as gerações. Seu pai brincava sempre: não, meu bem, você não é da espécie que dá bom dia ao sol.
- Oi! - ela atende ríspida o interfone.
- Uma encomenda para Haioka. Pode subir? - pergunta o moço da administração do condomínio.
Ela ia responder não, irritada. Mas pensa um pouco, olha para a camisola rosa curta que veste. No entanto, se falasse não, teria que ir numa sala esquecida entre os prédios, para buscar. Ela sempre errava o caminho do lugar onde ficavam as encomendas não entregues, no labirinto entre os prédios.
- Pode. Obrigada - volta ao quarto, pega um roupão lilás de feltro no closet. Vai ao banheiro, escova dentes e cabelos. Enquanto passa um líquido adstringente no rosto, tenta recordar-se de algo comprado pela internet nos últimos dias. Nada vem à mente.
A campainha da cozinha toca e ela vai pegar a encomenda. Não é um Sedex ou um envelope pardo.
- Hmmm - interjeição de algo promissor.
É uma caixa retangular preta, envolta em uma fita dourada. Hai adora embalagens bonitas. Carine é a especialista em belas caixas, fitas e papéis de seda. Não há cartão aparente.
Volta para o quarto e senta na cama. Arruma os travesseiros e recosta-se neles. Desfaz o laço, devagar. Abre a tampa solenemente e um cheiro invade o cômodo: baunilha. Fecha os olhos e respira fundo o cheiro gostoso. Dentro da caixa há favas de baunilha, unidas com um delicado laço dourado. Embaixo, um pequeno envelope azul claro escrito: Bonitinha. Reconhece a letra, o apelido que apenas uma pessoa usa e um sorriso brota. Abre o envelope e encontra uma pequena carta. Com uma certa taquicardia, lê: "Relações baunilha acontecem e fica um gosto bom. Inesquecíveis são as que deixam um sabor inexprimível na boca. Esse gosto fica e não há comparação possível. E o sabor permanece há mais de uma década. Talvez se possa dizer que o gosto foi (re)lembrado. Sempre é possível! O que sei é que o gosto baunilha se repete. O gosto dela é só dela, não desapareceu. Ainda que tenhamos nos esforçado para apagar o gosto. Não conseguimos. O futuro é nosso, depende de nós. A falta permanece. Do sempre seu, Tonho". Os olhos claros de Hai ficam marejados. Ela vai escorregando nos travesseiros e deita na cama. Cheira a baunilha, suspira, sente uma fina pontada cortante de saudades.
- Onde andará ele? - pergunta-se, num sussurro.
Procura o celular na cabeceira da cama, entre a bagunça dos livros. Disca aqueles números que sabe de cor, mesmo nas ocasiões em que se esforçou muito para esquecer. Hai é uma mulher que nunca esquece - dádiva ou maldição, esse excesso de memória".

(Cadernos de Luísa, Vanessa Souza Moraes)